segunda-feira, 26 de maio de 2014

CRÔNICA - A TURMA (TEXTO DE DOMINGOS PELLEGRINI)

Eu também já tive turma, ou melhor, fiz parte de turma e sei como é importante em certa idade essa entidade, a turma.

A gente é um ser racional, menos quando em turma. Existe, por exemplo, alguma razão para um grupo de pessoas sentar todo dia numa escadaria ou meio-fio e passar horas conversando?

Você pode falar a um filho, por exemplo, que refrigerantes engordam e chocolates dão mais espinhas em quem já tá na idade das espinhas. Ele nem ouvirá. Mas, se um dia a turma resolver, ele passará a tomar só água com limão e pegará nojo de chocolate.

Você pode falar que cabelo tão comprido é incômodo, calorento, atrapalha, mas que nada, ele te pedirá dinheiro para comprar mais xampu. Agora, se a turma resolver cortar careca, ele aparecerá de repente careca no café da manhã e nem quererá falar do assunto - qual problemas em cortar careca?

Você pode dizer que bossa nova é bom, e mostrar jornais e revistas, provar que só "Garota de Ipanema" já recebeu centenas de gravações em todo o mundo, mas ele aumentará o volume do rock pauleira ou da tecno-bost. Até o dia em que alguém da turma aparece com um CD de bossa nova e ele troca Axel Rose por Tom Jobim de um dia para o outro.

A turma tem modas, como quando resolvem todos arregaçar as barras das calças, que usavam arrastando pelo chão.

A turma tem traumas, como quando o namoradinho de uma se apaixona pela namoradinha de outro e...

A turma tem linguagem própria, uma variante local de um ramal regional da vertente adolescente da língua.

A turma adora sentar na calçada e na praça e falar sobre o que viram em casa na televisão.

A turma tem duplas de amigos e amigas mais chegados, e trios, e quartetos, que num grande minueto anarquista se misturam nas festas de aniversário.

Ninguém da turma dança até que alguém da turma começa a dançar, aí dançam todos trocando de par até acabarem dançando todos juntos como turma que são.

Um da turma se tatua, todos da turma querem se tatuar.

Um bota uma argola no nariz, os outros, para variar, botam no lábio, na sobrancelha e na orelha e...

A turma é isso aí, cara, uma reunião diária de espinhas e inquietações, habilidades e temperamentos, o barulho das personalidades se misturando, o jogo das informações e dos sentimentos rolando nas conversas sem fim, nas andanças sem cansaço, nas músicas compartilhadas, no refri com três canudos e uma empadinha pra quatro.

Na turma pouco dá pra todos, todo mundo divide, cada um contribui, a turma se une partilhando e repartindo.

A turma ri como só na turma se ri.

A turma julga quando erramos.

A turma castiga com silêncio e ironias.

A turma te chama, te reprime, te libera, te revela, te rebela, te maltrata, te orgulha, te ama e te envolve, te afasta e te atrai, mas a turma é assim porque a turma é a turma.

Até o dia em que - disse a todos os meus filhos - cansamos de ter turma e passamos a ser gente. E todos me disseram que sou um chato, mas o primogênito hoje já concorda: o tempo da turma passa.

Mas, aqui entre nós, como dá saudade!


Fonte: PELLEGRINI, Domingos. Ladrão que rouba ladrão. São Paulo: Ática, 2002.(Para gostar de ler)

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