terça-feira, 10 de novembro de 2015

CASO PLUVIOSO (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

                  
                 A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.

A chuva era maria. E cada pingo
de maria ensopava o meu domingo.


E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.


Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!


Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.


Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!


Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.


Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!


Eu lhe dizia em vão – pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.


E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,


que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.


Chuvadeira maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!


Eu lhe gritava: Pára! e ela chovendo,
poças dágua gelada ia tecendo


Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa


e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.


E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,


de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,


e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.


Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando


contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).


Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,


e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.


Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,


e maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,


e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,


e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, maria! – e ela parou.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Viola de bolso, 1955.

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