A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.
A chuva era maria. E cada pingo
de maria ensopava o meu domingo.
de maria ensopava o meu domingo.
E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.
como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!
maria, chuvosíssima criatura!
Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.
pensamento, desejo, sono, e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!
matinal e noturna, ativa...Nossa!
Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.
chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!
não sejas tão aquático fantasma!
Eu lhe dizia em vão – pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.
quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,
o deixava banhado em triste vinho,
que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.
mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
Eu lhe gritava: Pára! e ela chovendo,
poças dágua gelada ia tecendo
poças dágua gelada ia tecendo
Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa
que a correnteza forte criou asa
e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.
sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,
as fontes de maria mais chuvavam,
de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,
as coisas se lançaram no seu curso,
e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.
sob aquele sinistro e atro chuvido.
Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando
na mesma aquosa pasta iam clamando
contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).
catarata (jamais houve outra igual).
Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,
Que nada! As cordas d’água mais deliram,
e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.
mais se dilata em sua chuvarada.
Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,
já submergem com todos os viventes,
e maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,
delida e fluida a humana enfibratura,
e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,
comoveu-se a Divina Providência,
e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, maria! – e ela parou.
Não chove mais, maria! – e ela parou.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Viola de bolso, 1955.
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